Coringa | Um filme pode gerar violência no mundo real?

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Há algum tempo, o filme do Coringa vem sendo alvo de uma polêmica pertinente. O assunto em questão é referente ao tratamento mais humano para a origem do personagem. Mas não de uma forma narrativamente construtiva, onde o público consegue ter mais base para se relacionar ou se identificar com a trajetória.

Algumas críticas dizem que o filme, apesar de ser um esforço único para atualizar a personalidade do vilão que já virou uma espécie de lenda nas HQs, prioriza a verossimilhança. Portanto, é a crença de que alguém como o Coringa pode existir dentro de nossa sociedade. Ao invés de ver a origem clássica, com ele caindo dentro de um tonel de produtos químicos, aqui, ele já é um sujeito atormentado por problemas mentais e possui inaptidões sociais.

O clímax dessa mudança na vida de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é a constante negligência do meio social, que em vez de acolher e tratar, despreza e ri da situação de Arthur, sendo um fator essencial para o nascimento do Coringa. Trata-se da transformação de um sujeito com distúrbios mentais e sociais em um indivíduo extremamente perigoso. E é aqui onde a discussão começa.

Alguns alegam que a idealização do personagem com essas características, pode acabar dando voz a indivíduos reais em situações semelhantes a do protagonista. Pessoas que se sentem ignoradas, invisíveis e transformados em piadas. Geralmente, parte de comunidades online, esses sujeitos sofrem de uma imensa frustração na vida adulta e acabam por querer descarregar sua raiva em qualquer coisa que enxergam ser injusto e cruel.

Em suma, a crítica afirma que Coringa pode estimular esse tipo de comportamento, até mesmo legitimando ações e pensamentos potencialmente danosos.

É um debate com um ponto de vista válido, mas cai no mesmo segmento de discussões como as do “videogame influenciando tiroteios e violência” (um debate que já foi analisado até mesmo por estudiosos renomados e provado como uma afirmação errônea). É exatamente o mesmo princípio: Afirmar que uma obra ficcional, por mais real, humana e palpável que seja, dá vazão a tal tipo de comportamento. E no caso do cinema, é ainda mais inconsistente, pois o público é passivo em relação à interatividade com à obra, já que ele só está absorvendo um conteúdo, assim como assistir ao telejornal.

Ainda assim, deve se levar em conta que a ficção tem impacto na realidade. Seja a mídia que for, de alguma forma, ela tem poder de influência. Mas também isso não significa que a mídia em questão irá manipular o público a fazer coisas perigosas. É precipitado ser reducionista nesse sentido, pois o argumento pode tornar-se uma forma de censura à arte e como as mentes criativas devem produzir e encaminhar o projeto.

Algo com viés totalmente fora da realidade, pois deve haver liberdade criativa para conseguir entregar o que um diretor ou roteirista se propõe a fazer. Existem filmes feitos para determinados públicos. Se tem censura +18 (ou +16 aqui no Brasil), é óbvio que menores devem manter o máximo de distância. Obviamente, Coringa se encaixa nas características para o público adulto.

Discutir se uma obra ficcional pode sugestionar comportamentos ou persuadir, não é completamente equivocado, mas colocando como afirmação pura e simples, é indubitavelmente injusta. Pessoas com distúrbios iguais ou parecidos com os do protagonista de Coringa devem ser acompanhadas. Não dá para tratá-las como qualquer outro. Como também não se pode delimitar a forma como um livro, filme, série deva contar sua história, até porque além da censura, é uma atitude bastante enviesada por fomentar o pensamento de que produções midiáticas são responsáveis pela violência ou educação da sociedade.

Como pontuado pelo próprio Joaquin Phoenix, protagonista da trama, não cabe a um cineasta definir para o público o que é certo e o errado.

“Bem, eu penso nisso, para a maioria de nós, você consegue distinguir a diferença entre o certo e o errado. E existem aqueles que não conseguem interpretar nada além da maneira que eles querem interpretar.”

“As pessoas entendem letras de músicas de forma errada,” continua o ator. “Elas interpretam errado passagem de livros. Então eu não acho que seja responsabilidade de um cineasta ensinar moralidade para o público ou a diferença entre o certo e o errado. Quero dizer, para mim, eu acho que isso é óbvio.”

“Eu acho que se você conhece alguém que tem aquele nível de distúrbio emocional, eles podem encontrar combustível em qualquer lugar. Eu só não acho que você deve funcionar dessa forma. A verdade é que você não sabe o que está acontecendo para ser o combustível para alguém.”

O Coringa é essencialmente vilão. Não existe idolatria à figura por parte do ator, diretor ou roteirista, o que deixa a crítica ainda mais improcedente. Ademais, muito já foi dito em entrevistas e declarações sobre a história focar num profundo estudo de personagem, e não na glamorização e fetichização da imagem do psicopata.

O cinema vive por causa da diversificação. Essa arte necessita de abordagens diferentes, autorais e ousadas. Alguém como o Arthur Fleck podem existir no mundo real e esse é o propósito de Coringa: Fazer um paralelo com a realidade através da conversão de Arthur em Coringa. É além de tudo, mais uma face do vilão que em outras encarnações cinematográficas foi magistralmente interpretado por quase todos os atores, cada um deles munidos de traços de personalidade diferentes que resultavam em versões distintas.

O filme não tem o objetivo de motivar ou manipular atitudes perigosas, mas sim de mostrar como o indivíduo foi tão quebrado a ponto de cruzar os limites. O que aconteceu? Como aconteceu? É um simples mecanismo narrativo de profundidade, verossimilhança e sobretudo, de realidade.