“Não é errado dizer que a icônica imagem desta produção é o rosto de Daniel com lágrimas escorrendo por suas bochechas. Nós nunca havíamos visto isso antes. Normalmente em filmes de terror – como em ‘A Bruxa de Blair’ – é o rosto de uma garota branca em prantos”.
Comecemos essa análise por essa frase. Isso foi dito há algum tempo por ninguém menos que Jordan Peele, o diretor e roteirista de Corra! e sintetiza bem o que é o filme: é terror de qualidade com algo a ser dito não só nas entrelinhas, mas em todo o texto – que foge dos padrões existentes já tão saturados.
Desde a primeira cena do longa – um plano sequência que alia iluminação, som e fotografia de maneira muito eficiente – entramos em contato com o grande vilão do filme. Já ali o racismo é escancarado na tela, tanto na ação que se desenrola quanto no subtexto. Sim, o racismo é o grande vilão aqui. Não importa o que ou quem possa aparecer para atrapalhar nosso protagonista. A grande denúncia do filme, o que o faz ficar na cabeça depois de ser assistido é isso: o racismo.
E ele está ali, viu? Está ali de forma escancarada e maníaca, como é típico da linguagem de muitos filmes de terror, mas também está ali de forma velada em ações e comentários de personagens no decorrer da trama. Comentários e ações que, à primeira vista, podem soar como tentativas de bom tratamento mas que – por ignorância ou más intenções – escondem
um preconceito profundamente enraizado.
O texto de Peele é certeiro em retratar esse tipo de preconceito racial velado. Há cenas durante o filme que pintam em tela o sentimento de exclusão que um negro pode sentir em lugares repletos de pessoas brancas, a sensação de ser tratado de forma diferente quando na realidade, só existe o desejo de ser tratado como qualquer outro que ali se encontra. E se o roteiro tem seu mérito por conter cenas de tamanha relevância, a contraparte que dá vida a ele não faz por menos. Daniel Kaluuya, que muita gente deve conhecer do segundo episódio da série Black Mirror – e nem tanta gente assim deve se lembrar dele na série britânica Skins – mostra um grande potencial aqui interpretando o jovem fotógrafo Chris. O rapaz consegue empregar a intensidade necessária nas cenas em que o terror – tanto gráfico, quanto psicológico – se faz presente e nos entrega uma atuação convincente e capaz de conquistar nossa torcida.
Outro ponto forte do filme é a direção de Jordan. Em seu primeiro filme como diretor, ele já entrega uma direção segura de si, sabendo o que deseja e como deseja. Graças a isso temos um filme visual e sonoramente belo e interessante, com planos e opções de decupagem que funcionam, além de um trabalho de trilha sonora interessante – leia-se aqui efeitos sonoros num conjunto, não somente as músicas presentes no filme.
Por se tratar de um terror com um cunho social tão forte, o que vou dizer aqui acaba se tornando inesperado: o filme é engraçado. Existem piadas em diversos momentos do filme disparadas, principalmente, por Rod (Lil Rel Howery) que é amigo de Chris e principal alívio cômico do filme. E aqui entra uma ressalva quanto ao número de piadas que apesar de dar certos momentos de respiro ao filme e gerarem risadas, não são o ponto alto. Jordan Peele é egresso da comédia e isso fica claro nessas horas, mas algumas tiradas estão em momentos em que a tensão seria o mais indicado. Ele consegue passear entre o cômico e a tensão – mais um comprovante de sua capacidade como diretor e roteirista – mas em alguns momentos, peca pelo excesso.
O filme trata sobre racismo abertamente e isso deixa uma questão: ao retratar um embate entre brancos e negros, o filme não traz uma sensação de disputa que seria prejudicial? Confesso que pensei muito sobre isso e cheguei à conclusão: não. O filme não foi feito com esse intuito, não foi feito com a ideia de que negros e brancos são inimigos. Pergunto-me se ver um negro como protagonista máximo de uma obra, enquanto os brancos – sempre mocinhos – dessa vez agem como os vilões, pode causar essa ideia… Espero que não pois além de errada, é uma visão que pode fazer mal. Torço para que haja um discernimento por parte do espectadores em entender que aquela obra é ficcional, embora o tema que ela explore seja muito real.
Corra! é uma grata surpresa, seja pelo filme em si, seja pela revelação Jordan Peele. É um filme que tem um frescor, um ar de novidade e que além de divertir proporciona uma experiência social.
“Há algo transformador se você é um negro(a) torcendo em um cinema e ao se virar para o lado você vê um branco(a) torcendo pela mesma coisa que você. Nós ainda não havíamos permitido que a perspectiva negra fosse a protagonista de um filme como este em um senso moderno”.
Sim, Jordan. A perspectiva negra é a protagonista aqui. Que continue sendo em muitos mais.