[CRÍTICA] O Irlandês | Melancolia, culpa e violência

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Martin Scorsese dispensa apresentações. Tendo no seu currículo diversos filmes que sempre integram as listas de melhores de todos os tempos, o diretor escreveu seu nome na história no cinema. Em muitos destes filmes, foi acompanhado do excelente Robert De Niro, que entregou atuações memoráveis, inclusive ganhando o Oscar de melhor ator em Touro Indomável.

Por mais que Scorsese não limite-se a fazer filmes com temática envolvendo mafiosos, o diretor acabou virando um especialista nessa vertente. Seu filme mais famoso, Os Bons Companheiros (1990) é considerado por muitos o melhor filme de todos os tempos, com o ator Joe Pesci ganhando o Oscar de melhor ator coadjuvante. O longa acompanhava a história de 3 gangsteres, interpretados por De Niro, Pesci e Ray Liotta, ao longo de 3 décadas, numa narrativa envolvente e densa que tornou-se uma referência nos filmes do gênero. O trio formado por Scorsese, De Niro e Pesci voltou a encontrar-se em Casino (1995) com o diretor entregando outra grande obra, com uma atuação fantástica da deslumbrante Sharon Stone.

24 anos depois, estamos diante do retorno da parceria entre Martin Scorsese, Robert De Niro e Joe Pesci, numa produção Netflix, em um filme com a temática que consagrou o diretor. Desta vez, temos um estreante sob a direção de Scorsese, o veterano Al Pacino, ganhador do Oscar de melhor ator por Perfume de Mulher (1993). Pacino não é estranho aos filmes de máfia, já que estrelou a trilogia O Poderoso Chefão, com sua atuação sendo considerada uma das melhores de todos os tempos, além de ter interpretado o traficante alucinado Tony Montana no inesquecível Scarface (1983). É notório que com um elenco de estrelas e um diretor premiadíssimo, as expectativas para O Irlandês eram altíssimas.

O longa, baseado no livro “I Heard You Paint Houses”, do autor Charles Brandt, conta a história real de Frank Sheeran (De Niro), um veterano da Segunda Guerra e funcionário sindical que tornou-se o braço direito da família mafiosa Bufalino, liderada por Russel Bufalino (Pesci). O filme explora aproximadamente 4 décadas da história de Frank, desde seu primeiro encontro com Russel e como o mesmo conheceu um dos líderes sindicais mais emblemáticos da história dos EUA, Jimmy Hoffa (Pacino), e a amizade entre os dois.

O filme conta com a duração de 3 horas e meia, podendo intimidar alguns espectadores, mas o trabalho do roteirista Steven Zaillian é fantástico em manter a narrativa interessante, seja apresentando novos personagens ou acontecimentos. Em nenhum momento você sente que os fatos estão sendo jogados apenas para deixar o filme mais longo, já que tudo ali tem um propósito. A história começa com Frank velho, narrando os acontecimentos de sua vida, indo ao passado e voltando, constantemente. Em alguns filmes, essa ida e volta ao passado, pode tornar a narrativa confusa, disrítmica, mas aqui, tudo flui muito bem e acaba sendo natural.

O Irlandês não fica marcado só como o filme mais longo da carreira de Scorsese, mas também o mais caro, tendo custado 175 milhões de dólares, 50 milhões a mais do que o orçamento inicial. A razão para isso foi a ideia ambiciosa do diretor de rejuvenescer o elenco principal com efeitos especiais, ao invés de maquiagem ou escalar outros atores para representá-los mais jovens. Ao iniciar a trama na década de 40, era necessário que o núcleo principal estivesse com a aparência de acordo com a época. A técnica de “de-aging” é muito bem feita, dando um tom natural a De Niro, Pesci e Pacino, na maior parte das vezes. Por mais que os efeitos sejam fantásticos, eles não são perfeitos. De Niro ganhou olhos azuis brilhantes que as vezes chamam a atenção por serem artificiais demais. Isso pode incomodar um pouco no início do filme, mas o espectador acaba se acostumando. Em algumas cenas que os atores fazem movimentos rápidos, é possível notar também alguns pequenos problemas, mas nada que atrapalhe a experiência. Afinal, é difícil você ter mais de 70 anos e ter que agir em tela como se tivesse 30, principalmente em cenas mais intensas.

A atuação do núcleo principal de atores é simplesmente fantástica. Robert De Niro representa um personagem mais contido, que faz o que tem que ser feito sem questionar, extremamente leal a Russel Bufalino. O tom de melancolia do filme começa a destacar-se no ato final, fazendo com que ele possa assumir toda a dramaticidade do papel, regado de tristeza, pelas culpas que o assolam, numa performance memorável. Joe Pesci no papel de Russel Bufalino consegue captar bem a essência de líder mafioso, frio e calculista, além da sua relação tocante com o personagem de De Niro. O grande destaque fica para Al Pacino no papel de Jimmy Hoffa, explorando todo o talento do ator, principalmente com o temperamento explosivo. Sempre falando o que pensa e muito espontâneo, é impossível não dar alguma risada quando ele perde a paciência e sobra para quem estiver em tela.

Ao contrário do que muitos pensavam, Martin Scorsese não trata esse filme como uma sequência espiritual de “Os Bons Companheiros” ou tenta repetir o sucesso do mesmo. Ao contrário da abordagem mais agitada do primeiro, O Irlandês mostra o diretor abraçando uma abordagem mais intimista e dramática, com as consequências da brutalidade do meio mafioso. Sua direção não foge do que espera-se: tomadas ambientes, capturando os detalhes, lentamente, e sempre mantendo o foco nos personagens durante diálogos intensos, chamando o espectador para a trama constantemente. As cenas de ação não contam com firulas para sempre mostrar a violência de forma brutal e realista.

A trilha sonora do Irlandês casa bem com a proposta do filme. Robbie Robertson consegue captar bem o clima de melancolia e tristeza, fazendo com que faixas mais animadas, que vão desde o pop até o blues, fiquem guardadas para momentos específicos, principalmente seguindo as décadas pela qual a história está passando no momento. A faixa principal tem um tom de western spaghtetti moderno que casa perfeitamente com a abordagem do diretor.

O Irlandês é o projeto mais ambicioso e ousado da carreira de Martin Scorsese. Aos 76 anos e com um currículo notável, o diretor entrega mais um grande filme. Com uma trama dramática primorosa, bem dividida nos 4 atos, e atuações célebres da velha guarda, o filme não é só um dos melhores do ano, mas também é um dos melhores longa-metragens já feitos.