Não é difícil citar atualmente algum filme ou seriado que contenha personagens LGBTQIA+ ou referências às pautas. Elite, Sex Education, Euphoria, Gossip Girl… são algumas produções famosas de TV que tratam temas importantes e tabus de gênero e sexualidade. A Netflix, hoje muito conhecida por apostar em representatividade nas suas produções juvenis, lançou no fim de abril a série Heartstopper – que eu sempre embaralho a escrita por causa dos “t” – baseada na webcomic homônima de Alice Oseman.
A produção britânica mostra o florescer da amizade e romance entre Charlie Spring (Joe Locke) e Nick Nelson (Kit Connor), dois adolescentes com seus próprios desafios e inseguranças. Apresentando algumas características visuais bem únicas e um trabalho estético interessante e condizente, que referenciam à própria origem cartunesca de Heartstopper, a série trabalha temas conhecidos de forma mais sensível, um pouco mais “inocente” e até mais relacionável que outros trabalhos, como os citados no início deste texto.
Amor pelo olhar
Ao invés de apelar para um autodescobrimento que quase sempre coincide com momentos de tensão sexual, a relação de Charlie e Nick acaba retornando ao conceito mais fofinho de homoafetividade, dizendo mais respeito aos sentimentos e aspectos emocionais da relação, com o olhar, o toque das mãos, as mensagens preocupadas no Instagram e os abraços (e tem uma coleção de abraços nessa série) destacando o afeto entre os dois.
O seriado se desenha dentro da sua classificação indicativa para 12 anos, aqui no Brasil, desenvolvendo um relacionamento pautado mais no amor sincero que no desejo carnal, coisa que se via com alguma frequência em filmes de paixões infanto-juvenis, como o sucesso da Sessão da Tarde, Meu Primeiro Amor.
Nick, apresentado como um esportista hétero do 2º ano da escola Truham, exclusiva para meninos, tem o dilema sobre sua própria orientação sexual trabalhado durante os oito episódios de uma forma mais sensível do que acontece frequentemente, principalmente quando são envolvidos personagens bissexuais, que quase sempre aparecem como pegadores, predadores sexuais ou, se não, tratados como “confusos”. Aqui, os sentimentos do garoto sobre a necessidade do “não conte para ninguém” são bem expostos, sendo até muito decidido em relação ao que quer com Charlie (até mais que o próprio), com dúvidas mais voltadas a como se definir dentro das siglas LGBTs, comum na adolescência real.
Além disso, a história também se sustenta na famosa criação do grupinho de amigos “terror da terrinha anti-lacração” da internet, que expandem ainda mais as abordagens. Fora o casal protagonista, estão Elle (Yasmin Finney), uma aluna transsexual da escola Higgs e seu melhor amigo Tao (William Gao), amigo inseguro, exageradamente superprotetor e ciumento (ok, possessivamente ciumento) de Charlie. Além de Isaac (Tobie Donovan), o quietão que aparece muito pouco – lendo Naruto – como a alma mais neutra dessa série. Tara Jones (Corinna Brown) e Darcy Olsson (Kizzy Edgell) fecham o grupinho após conhecerem Elle, com as mudanças pela revelação pública do relacionamento entre as duas servindo, também, como um ponto de maturidade que auxilia Nick em seu próprio descobrimento e autoaceitação.
A superação dos obstáculos é maior que o ódio
O foco do seriado no amor (fraternal, passional ou amigável) é tanto que o bullying, questão que geralmente aparece como objeto principal de discussão em projetos que falem sobre a homossexualidade, é tratado como um ponto importante, mas não maior, mesmo sendo motivo para a relutância de Nick em se assumir. A desconfiança com o tratamento externo, colegas falando mal, agressões verbais e físicas etc., ainda estão ali, inclusive com a figura marcada do “bully”, o riquinho Harry, “amigo” de Nick, e a pressão psicológica do enrustido Ben, ex-ficante de Charlie.
No entanto, as ameaças acabam não ocupando a maior parte dos episódios (mesmo naquele intitulado “Bully”), tanto que pouco é mostrado da época em que Charlie se assumiu e sofreu represálias na escola, com seus traumas sendo mostrados de outra forma. O mesmo com os problemas de Elle, que declaradamente odeia a escola dos meninos pelo que viveu lá. Charlie e principalmente Tao, que revida verbalmente, sofrem diariamente nas mãos de valentões, mas o seriado acaba enfatizando as consequências através dos traumas e dificuldades sociais e amorosas dos personagens, algo também feito em Generation (HBO Max).
Fora isso, Ben e sua perseguição por Charlie também poderiam servir de ponto de partida para a evolução do personagem ainda recluso, mas acaba por sustentar apenas a superação do protagonista. Pela resolução final do conflito entre os dois, é possível que seja retratado diferentemente em uma possível segunda temporada.
Com episódios de aproximadamente 30 minutinhos, a série passa de forma leve e a maratona acaba rapidamente. O roteiro é tão bem feito que todas as peças se encaixam de forma leve e natural, mesmo que não vejamos tudo o que ocorre no período entre um episódio e outro, e a química entre os personagens torna tudo melhor. Seja Nick e Charlie, Tara e Darcy ou Tao e Elle (que constroem uma relação que parece platônica até o fim da temporada) exalam química, com uma atuação extremamente confortável do grupo em conjunto. Infelizmente, Isaac tem participação muito pouco relevante e acaba esquecido no churrasco.
Heartstopper chega à Netflix como um respiro e uma opção mais familiar das pautas LGBTQIA+ no audiovisual. Não que o choque do sexo e intrigas da “Gossip Girls” e “Elites” da vida não tenham importância na luta pela normalização da homoafetividade, mesmo que não entre pessoas homossexuais (como em Sex Education), principalmente dentro do padrão das relações masculinas e heteronormativas. Porém, a representação dos sentimentos sinceros e as problemáticas da homofobia acabam se tornando até mais pesadas quando em um produto leve, acumulando o poder de atingir mais público e, quem sabe, aumentar situações de apoio fraterno, como mostra Heartstopper… mais de uma vez.