Olhos de Serpente através de uma Janela de Overton – Como o “Capitão Hidra” se tornou a história mais interessante da Marvel

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Quando anunciada pela primeira vez, a nova revista “Captain America: Steve Rogers” não trazia grandes novidades. Nas consequências do evento “Standoff” (ainda não publicado no Brasil), Steve Rogers recuperaria o soro de super-soldado que o mantinha jovem e poderoso em suas veias (drenado em uma luta contra o abominável Prego de Ferro) e voltaria a usar o manto de Capitão América com um novo escudo, uma vez que o anterior está sob a posse de Sam Wilson, o atual Capitão América.

Contudo, Nick Spencer, o escritor tanto de “Captain America – Sam Wilson”/”Standoff” quanto de “Captain America: Steve Rogers” tinha ideias maiores em mente. Grande entusiasta do cenário político americano (inclusive já tendo se candidatado sem sucesso a cargos políticos no passado), ele não podia deixar de fazer analogias ao que acontecia em seu próprio país, deixando-as refletir no Universo Marvel.

Já no começo de sua fase em “Captain America – Sam Wilson”, em um arco intitulado “Não é o meu Capitão América”, ele nos apresenta uma nova Sociedade da Serpente, em trajes extremamente similares aos do movimento KKK, perseguindo e executando imigrantes ilegais, na mesma época em que os fervorosos discursos de Trump estavam em alta. E é aí que entra a Janela de Overton.

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Tornando o inaceitável, aos poucos, em aceitável.

A Janela de Overton mede a opinião pública e o que ela considera aceitável ou inaceitável. Mas ela se desloca, através de ferramentas publicitárias ou da situação. Temos como exemplo o Reinado Sombrio da Marvel, extremamente baseado na paranoia americana sobre o terrorismo e como qualquer coisa, por mais abominável que fosse, podia ser feita e aceita sob a bandeira do “anti-terrorismo”.

“Se as pessoas forem simplesmente enganadas, há sempre a chance de um dia acordarem e se rebelarem contra o crime. Mas nós não as fazemos mudar de ideia. Nós mudamos a verdade. A maior parte das pessoas simplesmente quer ser deixada em paz; elas concordam com tudo e aceitam qualquer coisa, desde que nós cuidemos de manter suas ilusões de liberdade e o estilo de vida norte-americano. Nós alavancamos suas esperanças e alimentamos seus medos, e, depois que elas acreditam, são nossas para sempre.” – Janela de Overton, Glenn Beck

O arco termina com a discussão sobre os métodos serem menos importantes que os resultados no caminho para “tornar a América grande de novo”. A resposta é inconclusiva, mas Spencer abre um caminho, através da visão de Sam Wilson sobre os acontecimentos, para mostrar que a América está decadente, especialmente quando se trata de moralidade.

É quando começa o retorno da Hydra, totalmente derrotada por Sam Wilson no começo de seu arco, antes de seu rompimento com o governo. “Standoff”, também idealizada por Nick Spencer, mostra um programa pouco convencional do governo para prender supervilões através de lavagem cerebral. O programa contava com a ajuda de um fragmento de Cubo Cósmico modificando a mente dos vilões para pensarem que se tratavam de habitantes de uma cidade do interior.

As coisas na “prisão” obviamente dão errado e, no final, além da fuga de alguns vilões, Steve Rogers acaba recuperando sua vitalidade através de Kobik, o fragmento do Cubo, e volta à ativa como super-herói. É revelado pouco depois (e apenas para o leitor) que ela fez mais do que isso: Ela reescreveu a vida de Steve Rogers, pedaço por pedaço, transformando-o em um agente da Hydra infiltrado. Uma das duas Hydras, pelo menos.

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Manipulando o Universo Marvel pela ascensão da Hydra.

A sacada de Spencer aqui é genial: Mantendo as metáforas sobre o cenário político americano, ele divide a Hydra, a maior ameaça do estilo de vida americano, em duas vertentes: Uma fundamentalista, regida pelo Barão Zemo e com métodos similares aos do ISIS, que o próprio Capitão América convertido combate e uma Hydra regida pelo Caveira Vermelha extremamente purista, odiadora de imigrantes e refugiados similar ao nazismo original e, bom… ao que Donald Trump defendeu durante sua campanha presidencial.

Mas, curiosamente, o próprio Capitão percebe que essas duas abordagens são extremistas e só levariam o país às ruínas, e também discorda dos heróis, que preferem brigar entre si (na famigerada Guerra Civil II) e da SHIELD, extremamente corrupta e desviada de seu propósito original. Ele começa, através de seu próprio título, a manipular acontecimentos do Universo Marvel em prol de sua nova Hydra, que ele acredita ser o que a América precisa.

O plot twist trazido por Spencer é justamente o que a Marvel precisava, dialogando entre seus dois Capitães América e a política americana. O heroísmo é relativizado enquanto, à sua maneira, todos querem uma América melhor e o próprio Sam Wilson, talvez o que represente o lado mais heroico, acaba precisando tomar decisões controversas para manter o país em equilíbrio, o que o coloca em uma posição extremamente delicada, com o próprio Steve Rogers conspirando pela sua queda.

Se a vitória de Donald Trump com a Janela de Overton agora empurrada para a extrema-direita trará ou não consequências no grande esquema que Spencer monta em suas gloriosas páginas, precisamos esperar para ver. Mas é certo que suas decisões são cada vez mais precisas e merecem ser lidas com atenção, pois, uma vez mais, os quadrinhos se tornam um espelho da realidade. Ou talvez seja uma janela.