Na vida da população segregada, muitas vezes isolada e abandonada historicamente pelo poder público, a vida cotidiana fala muito mais do que situações específicas, hiper-dramatizadas. É seguindo essa linha que produções de sucesso da televisão estadunidense, como Atlanta e Insecure, retratam o sofrimento das comunidades negras dos Estados Unidos sem apelar para dramas extensos e ocasiões isoladas de violência racial – como fazem maioria dos seriados e filmes com ao menos um personagem negro na trama.
Ambos os seriados foram lançados no segundo semestre de 2016.
Concebida pelo ator, rapper, produtor, roteirista, diretor e protagonista da série (ufa…), Donald Glover, Atlanta, acompanha o cotidiano de Earn Marks tentando ganhar a vida na cidade homônima, localizada no estado da Geórgia, como agente do seu primo Alfred (Brian Tyree Henry), o rapper Paper Boi, que começa a ganhar fama após um crime.
Com poucos episódios por temporada, todos com uma média de 30 minutos, Atlanta aborda a sobrevivência de seus personagens no gueto, ao mesmo tempo que discute temas importantes como a indústria cultural e o papel artístico do Rap – um confronto que acontece muitas vezes através de Earn e Alfred – além do racismo estrutural e depressão.
A série concentra-se tanto em seu núcleo e em abordar esse cotidiano que a cidade de Atlanta, em sua imagem como “grande cidade, com grandes prédios”, sequer aparece. A periferia é representada como é, sem filtros que tentem disfarçar a pobreza.
Por outro lado, ainda que com a mesma proposta “cotidiana” e pé no chão, Insecure, criada pela também protagonista Issa Rae (interpretando Issa Dee), traz personagens negros que são, em geral, mais bem-sucedidos economicamente, mas não deixa de dialogar com as comunidades de onde os personagens vieram e com as dificuldades dessa população na realidade de Los Angeles.
Criadas, produzidas e roteirizadas por negros, com elencos também majoritariamente negros, Insecure e Atlanta não perdem tempo criando casos isolados que representam graficamente o racismo, mas aproveitam seu espaço de exibição para trabalhar a quase rara possibilidade de contar uma história sobre negritude e para falar sobre… os negros.
As críticas sociais estão todas ali, seja com Earn e sua namorada Vanessa (Zazie Beetz) enfrentando olhares estranhos numa comunidade alemã ou tendo tratamento diferenciado em locais frequentados por brancos, seja com o ambiente e o cenário, como quando o bairro de Issa começa a ter uma debandada dos empreendimentos negros e a glamourização através da chegada de moradores brancos.
Insecure e Atlanta, assim como outras séries como: I May Destroy You, Generation, The Last O.G e, voltando mais no tempo, até mesmo Um Maluco No Pedaço, usam de seu pouco tempo de exibição para acompanhar a vida de uma pessoa e construir personagens relacionáveis, menos estereotipados ou que usam do estereótipo por alguma razão (algo muito mais presente em Atlanta).
Em Insecure, cada dia é um dia. Ainda que haja, obviamente, backgrounds e ocasiões que carregam a narrativa por fora, muitos dos episódios falam muito mais pelas comunidades pobres e segregadas do que qualquer frase de efeito oportuna de um negro em uma série ou filme dominados por brancos. Seja focado em Issa, no seu ex-namorado Lawrence (Jay Ellis) ou na sua melhor amiga Molly (Yvonne Orji), a triste realidade é colocada ali, mesmo que o episódio seja só a personagem enfrentando alguma insegurança (a série é sobre isso, acima de tudo, é literalmente o nome dela).
Mas o que temos no Brasil?
No Brasil, o mais próximo dessa categoria de histórias talvez seja Sintonia, que ainda enfrenta a grande falta de maturidade do público brasileiro para com a cultura das periferias locais. Assim como nas séries estadunidenses citadas, Sintonia lembra da música como um ponto crucial dentro das comunidades – lá, o Rap, aqui, o Funk.
O drama produzido por KondZilla quebra o romantismo das periferias na televisão (e, principalmente, do SBT), das casas coloridinhas e do “funk gentil”, para apresentar algo muito mais realista, mesmo que mais dramatizado que Atlanta, por exemplo (mas seria covardia comparar).
Quando se fala da falta de qualidade e de diversidade de conteúdo do audiovisual brasileiro, o que vem à cabeça é a falta de produções com orçamentos estrondosos, com efeitos visuais incríveis, super-heróis e filmes de ação estonteantes. No entanto, a realidade é que, por aqui, ainda falta muito dentro do segmento de produções pequenas, com o domínio das novelas escritas pelos mesmos autores de meio século atrás, protagonizadas pelos mesmos atores brancos.
Sejam elas localizadas em São Paulo ou em Salvador, a dramaturgia brasileira sempre coloca o negro no elenco para suprir o papel do escravo moderno e, claro, acompanhado pela romantização da pobreza.
Era esperado que, com a chegada das grandes plataformas de streaming, a valorização do audiovisual brasileiro acontecesse, o que não foi o caso. Mesmo na Netflix, o investimento em potências europeias e asiáticas é muito maior que em países emergentes, principalmente latinos, que possuem uma estrutura audiovisual de certa forma consolidada.
Em território tupiniquim, somadas todas as dificuldades econômicas que diminuem a participação de produtores audiovisuais oriundos das periferias, a cultura é tratada atualmente com ainda mais descaso.
Enquanto países como a Coreia do Sul fermentam dramas interessantíssimos e com uma qualidade e identidade visual invejável (até mesmo perante o “padrão” da TV e do cinema estadunidense), tendo como exemplo: Round 6 (Netflix), Dr. Brain (Apple TV+) ou Parasita, o Brasil rebaixa seu ministério cultural, critica o valor da arte e desmotiva produções brasileiras – principalmente as mais críticas ao sistema, como aconteceu recentemente com Medida Provisória, de Lázaro Ramos.
Não é muito diferente do baixo investimento dos próprios estúdios brasileiros: numa época em que séries como Euphoria, Generation, Sex Education e várias outras com apelo “teen” fazem sucesso, a Globo cancela Malhação ao invés de renová-la e torná-la melhor, diminuindo ainda mais a possibilidade de se representar fielmente realidades de desprezo social pelo Estado através da televisão.
Obviamente, investir nesse tipo de conteúdo nunca pareceu ser o foco das grandes emissoras abertas e é aí que o streaming poderia, finalmente, agir.
É importante observar que. tanto Insecure quanto Atlanta são séries de canais “Premium” da TV a cabo, HBO e FX, respectivamente, e que fazem muito sucesso nos streamings. É claro que são séries que “só” estão existindo mais, mas ainda são poucas perto das séries de 50 minutos com elencos muito brancos e que sempre ganham os status de “melhor série da atualidade”, como Succession (HBO) e The Crown (Netflix), mas os produtores negros vêm ganhando cada vez mais espaço dentro da mídia estadunidense.
Mesmo que o funcionamento do racismo seja um pouco diferente no Brasil, em comparação com os Estados Unidos, e que a segregação racial tenha sido muito mais forte no país norte-americano, gerando uma certa singularidade cultural nos guetos em diferentes locais, a pobreza e o preconceito com as pessoas de periferia e sua arte são relacionáveis. É importante que surjam novos produtores audiovisuais no Brasil e que sejam dadas oportunidades para que novos conteúdos parecidos com Sintonia aconteçam, ainda que a dificuldade se eleve pelo tratamento que o país dá à cultura local, principalmente qualquer produção mais voltada para a realidade negra e periférica.
Assim, talvez seja um ótimo momento para o amadurecimento das narrativas brasileiras sobre a vivência de maioria da sua população. O elemento crítico no Brasil é tão faltante quanto a representatividade.
São necessárias visões que saem de quem convive mundanamente com temas como: drogas, gênero, sexo, preconceito e sim, com palavrão e muita música – relacionar as pessoas com seu cotidiano nas telas pode servir aqui.
Quem sabe, algum dia cheguem a produzir algo com o poder crítico que tem Random Acts of Flyness, que em seu primeiro episódio cria uma espécie de esquete voltado a falar sobre a “branquice” e cenas reais de violência policial contra pessoas negras, mas esse ainda é um “choque” grande demais.