O Estado, a Revolução e o Demolidor de Chip Zdarsky

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Em 2019, Chip Zdarsky assumiu o título do Demolidor e segue fazendo um ótimo trabalho. Confesso que o início dessa revista não é dos mais empolgantes. Temos mais uma vez um Matthew Murdock fragilizado e repensando a sua posição como Demônio de Hell’s Kitchen. Não que seja mal trabalhado ou possua diálogos ruins, é só que já vimos isso antes.

Esse começo não foi de todo mal, Zdarsky nos proporcionou excelentes diálogos, como este da edição #9, em que Matthew e Reed jogam xadrez enquanto conversam sobre ninguém menos que Deus.

Mais adiante, temos uma breve mudança no modo de agir de Matthew Murdock. A violência em Hell’s Kitchen cresce novamente e seria um clichê se isso não tivesse um propósito fora e dentro do gibi. Bilionários, os irmãos Stromwyn detêm um alto poder econômico, a nível de manipular a violência no bairro e manter os policiais olhando para o outro lado, a fim de fazer com que os preços de imóveis caiam para que possam adquiri-los sem dificuldade.

Matthew decide ir até a raiz do problema, mas ele vai descobrir que a situação é mais complicada do que parece. Fora da revista, o propósito é jogar luz sobre um assunto observado na realidade do autor e do leitor. Uma crítica social à nossa realidade.

Os irmãos Stromwyn não só são capazes de corromper a polícia de Nova York, como também de transformar o próprio Wilson Fisk, que já fora o temível Rei do Crime e atual prefeito de Nova York, em seu cachorrinho, o espancando sem que o mesmo revidasse, suportando calado.

Mas o que possibilita aos irmãos Stromwyn manipular a polícia, fazer o temível Fisk de pano de chão e saírem ilesos sem nenhuma consequência? Bem, o Estado. Como? Alguns autores nos explicam.

O Estado é o produto e a manifestação do carácter inconciliável das contradições de classe. O Estado surge precisamente onde, quando e na medida em que as contradições de classe objectivamente não podem ser conciliadas. E inversamente: a existência do Estado prova que as contradições de classe são inconciliáveis.

(Análise de Vladimir Lenin sobre A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, agosto de 1917).

Em que parte do Demolidor de Chip Zdarsky esse caráter inconciliável de classes é apresentado? Sem dúvidas, os moradores de Hell’s Kitchen desejam viver em paz, mas essa paz não diminui o preço dos imóveis de interesse dos irmãos Stromwyn, logo, há um conflito que o Estado (Governo de Nova York/Fisk) não consegue conciliar.

Apesar deste conflito ser constatado, não se pode ainda imaginar porque que esse tal Estado não possa frear os irmãos Stromwyn, que não são nenhum Thanos ou Doutor Destino da vida. A resposta é simples: O Estado é moldado para representar eles, pois são a classe dominante. Como eles dominam?

A segunda característica é a instituição de um poder público, o qual já não coincide diretamente com a população que a si própria se organiza como força armada. Este poder público especial é necessário porque desde a divisão em classes se tornou impossível uma organização armada espontânea da população… este poder público existe em cada Estado; não consiste meramente de homens armados, mas também de apêndices materiais, prisões e instituições de coação de toda a ordem, das quais a sociedade gentílica (de clãs) nada conheceu

(Friederich Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, 1884)

Neste trecho, Engels cita nada mais que a polícia. Ela não age em Hell’s Kitchen para proteção de seus cidadãos, ela age em Hell’s Kitchen para conter as consequências da desigualdade social que podem respingar naqueles com poder: tráfico de drogas, assaltos, assassinatos, disputas por território e em caso de organização popular, uma revolta.

A proteção do cidadão se evidencia como ilusão na revista quando todos eles simplesmente acatam a ordem de não se envolver em nenhum conflito no bairro, mesmo que a guerra entre gangues manipulada pelos irmãos Stromwyn pudesse deixar moradores em perigo.

Mais uma vez, o Estado se mostra um instrumento burguês, desta vez, facilmente manipulável através da corrupção de seus agentes. Mas o que fazer quando a polícia é comprada, os veículos de mídia manipulados não mostram o que está acontecendo e o seu bairro está à beira de um colapso? Bem, Zdarsky e Engels concordam com a organização popular.

A substituição do Estado burguês pelo proletário é impossível sem revolução violenta. A supressão do Estado proletário, isto é, a supressão de todo o Estado, é impossível a não ser pela via da extinção.

(Vladmir Lênin, O Estado e A Revolução, agosto de 1917).

É a população, e somente a população, quem se levanta para dar um fim nos problemas provocados pela falha do Estado como conciliador de classes. Vestindo máscaras daquele que é um produto da violência de Hell’s Kitchen, o herói Demônio, e armados com o que podem. Considero esse um dos melhores momentos da atual fase do Atrevido.

Ele (o poder público) reforça-se, porém, na medida em que se agudizam os antagonismos de classe no seio do Estado e em que os Estados com fronteiras comuns se tornam maiores e mais populosos – olhemos apenas a nossa Europa de hoje, na qual a luta de classes e a concorrência de conquistas fizeram subir o poder público a um plano em que ele ameaça devorar toda a sociedade e mesmo o Estado.

(Friederich Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, 1884)

O Demolidor é o um símbolo para Hell’s Kitchen e uma revolta baseada nesses eventos não é interessante para o Estado (Wilson Fisk). Não fica evidente que esses eventos tenham um impacto na decisão de Fisk de caçar os heróis em Nova York usando o seu novo aparelho burocrático militar, mas sem dúvidas, pode-se traçar um paralelo com a premissa de Devil’s Reign (nova saga de Chip Zdarsky, fruto da sua trajetória no Demolidor até então).

O Demolidor é um herói. O herói desempenha papéis fundamentais em nossa sociedade e está presente nela desde os tempos antigos. É no herói que se projetam problemas, aspirações e até mesmo a estrutura da sociedade.

Nos tempos atuais, nós temos histórias em quadrinhos em que podemos optar por seu uso como instrumento de compreensão da realidade. Foi o que Chip Zdarsky fez com o Demolidor e o homem sem medo é o herói perfeito para abordar questões sociais tão importantes.