Quem se acostumou a ler gibizinhos de super-heróis da Marvel já percebeu que, a depender de quem os escreve, existem diferentes interpretações a respeito do que os personagens realmente são e desejam ser. Veja Loki, por exemplo. Ele é o todo-mau “príncipe da maldade” ou apenas um rejeitado incompreendido buscando atenção?
Nos quadrinhos, ele já foi um vilão, um jovem vingador, um agente de Asgard, um político fracassado, um rei. Foi bom e foi mau. Foi responsável por unir os Vingadores (mais de uma vez), entrou em guerra com os X-Men e se disfarçou de Eternidade para distribuir discursos motivacionais de validade questionável. Qual é o verdadeiro Loki? Qual é o seu favorito? Em qual deles o MCU deveria se inspirar ao devolver o personagem para o seio da família marvete?
E é pensando nisso que a série Loki dá partida, começando imediatamente após Vingadores: Ultimato. Lá, o personagem consegue mudar seu destino e escapar dos Vingadores após a Batalha de Nova York. Descobrimos, então, que ele é imediatamente capturado pela AVT — uma agência responsável por se livrar de pessoas que conseguem mudar o próprio destino (Variantes, como eles as chamam) e resetar a linha do tempo para como deveria ser.
Em suma, não é possível mudar o próprio destino, sob o risco de ramificar a linha do tempo tão profundamente que se cria um novo universo.
Surge a questão predominante da série: quem escreveu esse destino? Quem falou que Loki absolutamente deve perder para os Vingadores, ser aprisionado e morrer? Quem decidiu que o Deus da Trapaça, da Mentira e da Maldade não pode mudar? E por quê?
A partir daí, somos gradualmente apresentados aos detalhes que vão compor a jornada de Loki. Fora do próprio fluxo de tempo, observando seu passado e futuro, o personagem tem a chance de refletir sobre o verdadeiro significado do seu “glorioso propósito”. Enquanto isso, também precisa caçar uma Variante fugitiva dele mesmo em troca de sobreviver um pouco mais. Isso nos permite aprender sobre uma chuva de conceitos novos no MCU, como os eventos Nexus, que terão sua importância em projetos futuros da Marvel nos cinemas.
Se você se acostumou demais aos excessos das aventuras tradicionais de super-heróis anabolizados distribuindo porradas e ignorância, Loki pode ser uma boa oportunidade de respirar fundo e aproveitar, sendo construída na base do diálogo e do amor.
Às vezes, até quando há porradaria, seria melhor se não tivesse. Os agentes de campo da AVT, chamados de homens-minutos, protagonizam cenas de lutas tão patéticas que é difícil de acreditar que eles prenderam titãs e vampiros, como eles afirmam. Loki, com uma ou outra exceção, também não é muito diferente quando luta.
O que realmente vale a pena são os diálogos que o Deus da Trapaça tem com as suas diversificadas Variantes e com o agente Mobius da AVT sobre o que ele é e o que pode se tornar. Através dos episódios, o personagem é desconstruído em suas possíveis formas e personalidades, como um espelho quebrado com reflexos distintos a cada fragmento.
Conhecemos um Loki criança, um Loki idoso, um Loki jacaré e por aí vai. Tirando Sylvie, a Variante feminina que Loki precisa caçar, nenhum dos outros aparece muito, mas suas aparições agregam múltiplas camadas ao protagonista e prestam tributos visuais interessantes às décadas de versões do Loki nos quadrinhos. Diante dessas inesgotáveis possibilidades de ser, a busca por livre arbítrio, mesmo arriscando a existência de um multiverso, se torna o tema essencial. Afinal, de que vale viver aprisionado?
Embora já seja a nova rainha do público marvete, Sylvie é muito inconsistente. Uma hora, ela é uma psicopata que dizima homens-minuto como quem come jujubas. Pouco depois, é uma pessoa normal, que até sorri e se emociona. Ela não confia em Loki do começo até o fim, mas confia o suficiente em sua maior inimiga para cometer um potencial suicídio assistido. Parece até que, a cada decisão que ela toma, ela precisa tomar uma completamente oposta logo a seguir só para causar um pouco de drama. Complicado.
Já o maior antagonista da série, majoritariamente chamado de “Aquele que Permanece”, é um personagem muito interessante, apesar de também aparecer pouco. Apresentado em uma versão que lembra muito o personagem Immortus — a identidade que o Kang mais velho adota — tanto visualmente quanto psicologicamente, ele agrega muito aos diálogos finais com seus jogos e irreverência capazes de animar até o Limbo. Seu fim nada definitivo também deixa claro que o personagem ainda tem muita quilometragem temporal para rodar no MCU.
Levando tudo em conta, a jornada da série pode até parecer uma serpente devorando a própria cauda, infinitamente condenada a repetir a mesma ação. Contudo, a sensação aprisionante de assistir a alguns episódios e parecer que não saiu do lugar não é um defeito da série, mas seu maior acerto, tal é a inexorabilidade do destino daqueles que não possuem livre arbítrio.
No fim, para evitar correr sem sair do lugar, cabe a cada personagem lidar com o que eles têm de melhor e pior a oferecer. Alguns querem vingança, outros querem amor, outros só querem um jet ski. O que eles precisam fazer para conseguir? Quem precisam se tornar? O potencial para o bem ou o mal está lá, eles só precisam poder escolher.