Não é falta de fidelidade, é só seu preconceito falando mais alto

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Nos últimos anos, muito têm se discutido sobre a “falta de fidelidade” ao adaptar personagens famosos dos quadrinhos e livros para a TV ou cinema, contudo, isso se intensificou recentemente com a apresentação da personagem Angrboda em God of War Ragnarok, catalisando outras críticas similares à atriz Zendaya e sua personagem no Universo Cinematográfico Marvel.

É claro, não tardou muito para que surgissem imagens alteradas digitalmente para mostrar como essas personagens seriam melhores se fossem brancas, loiras e de olhos claros, mas você já parou pra pensar o quão absurdo isso é?

Por adaptar a mitologia nórdica, muitos se mostraram indignados com o fato de Angrboda ser retratada como uma jovem negra, afinal, acredita-se que os nórdicos são de uma pureza de raças ímpar, onde é impossível que houvesse miscigenação em um período tão antigo, mas é não é preciso pensar muito para entender que não há problema algum em retratar a personagem como negra, afinal, estamos falando de uma obra fictícia que também adapta contos mitológicos e não fatos históricos em si.

Representação de Angrboda por Andrea Piera Laguzzi

E mesmo que essa fosse uma adaptação histórica, seus criadores ainda teriam liberdade criativa e artística para fazer as mudanças que quisessem. Além disso, a cor da pela de um personagem não deveria, jamais, determinar se ele faz jus a um personagem ou não.

Ao ser questionado sobre o assunto, Matt Sophos, roteirista do God of War de 2018 e de Ragnarok, falou sobre como é absurdo questionarem a cor da pele de Angerboda.

“Não é fiel à mitologia nórdica/não respeita a cultura”
Ah cara. O grande assunto. Deixe-me começar com isso: God of War é nossa interpretação de mitologia, não de história – nórdica ou grega. Nós contamos uma história pessoal com um pano de fundo de deuses, gigantes e etc., através de nossa perspectiva. E essa perspectiva não é 100% fiel. Por exemplo, aqui está um resumo rápido de algumas das inspirações mitológicas por trás dos protagonistas de God of War (2018):

Brok: Um lendário ferreiro dos Anões que tornamos azul e fala como um minerador boca-suja vindo do Texas.
Sindri: Outro lendário ferreiro dos Anões que tornamos cinzento, germofóbico e que sabe muito sobre bactérias (“pequenas bestas”).
Mimir: Enraizado na mitologia nórdica, em God of War, ele é escocês. Mimir é o nome que ele assumiu quando chegou a Midgard, e o ligamos a um personagem do folclore Inglês (e especialmente das peças de Shakespeare)
Baldur: O deus da luz e da pureza nas lendas, nós absorvemos o básico de sua invulnerabilidade para (quase) todas as coisas e o tornamos incapaz de sentir qualquer coisa por causa disso.
Loki: O fizemos meio gigante, um quarto humano e um quarto semideus grego. Preciso dizer mais?
O pai de Loki: Nos apoiamos na tradução de “Farbauti”– o “artilheiro cruel” — para ligá-lo a Kratos… Um semideus grego, rude, com uma história como assassino de deuses. Ele também foi dublado duas vezes consecutivas por dois atores negros incríveis. Mas estou divagando…

Acho que o que eu quero dizer é que… Nós consistentemente pegamos personagens mitológicos e criamos nossa própria versão. Então, se a cor da pele de Angrboda é o seu limite para o quão respeitosos nós fomos, provavelmente vale fazer uma auto avaliação. Obrigado por ouvirem.

Só por essa explicação, já é possível concluir que as críticas à Angrboda são pífias, mas Sophos vai além, ao responder um seguidor no Twitter com as bases usadas na trama e como nem mesmo elas diziam que só haviam personagens caucasianos nas histórias mitológicas.

“Eles também têm elfos azuis na mitologia Nórdica? O Loki era filho de um semideus Grego? Por favor, me mostre nos Eddas onde diz que todos os Jötunn eram brancos como neve? Deixe-me te poupar o trabalho… você não pode. Eu li eles.”

Além disso, o fato de Angrboda ser uma divindade, permite que ela assuma a aparência humana que quiser, ou será que você se esqueceu que Zeus assumia a aparência de diversos homens diferentes para dormir com outras mulheres que não fossem sua amada Hera?

Seguindo para a sessão de absurdos, temos o ódio gratuito à personagem Michelle Jones dos filmes do Homem-Aranha de Tom Holland, também conhecida como “MJ”.

Fora o fato do nome de Michelle fazer referência à Mary Jane Watson dos quadrinhos, as semelhanças entre as duas param por aí. Inclusive, Jon Watts, diretor dos filmes do Aranha, declarou que a inspiração para a personagem veio de Ally Sheedy em O Clube dos Cinco, uma garota introspectiva e estranha, mas que é mais interessante do que aparenta.

As críticas à personagem de Zendaya são antigas e até mesmo James Gunn, diretor de Guardiões da Galáxia e O Esquadrão Suicida, se posicionou sobre o assunto e disse coisas bem similares às ditas por Sophos sobre Angrboda.

As pessoas ficam chateadas quando algo que consideram intrínseco a um personagem de quadrinhos muda quando adaptado para um filme. Eu entendi isso. Há filmes de que não gosto porque acho que há um mal-entendido básico da história ou do personagem quando a história em quadrinhos é transferida para o cinema (ainda odeio como no primeiro filme do Batman o Coringa foi revelado como o assassino dos pais de Bruce Wayne, por exemplo.)

Dito isso, não acredito que um personagem é a cor de sua pele. Quando Michael B. Jordan foi escalado como Johnny Storm, eu não entendi o alvoroço. A principal característica de Johnny não era, para mim, ser branco ou ter cabelo loiro, mas ser um herói fanfarrão, engraçado e sem papas na língua. Eu estava feliz que ele seria interpretado por um dos melhores e mais charmosos jovens atores que existiam.

Ontem, espalhou-se o boato de que a personagem Mary Jane estava sendo interpretada por uma jovem negra, Zendaya, e o inferno estourou na Internet (de novo). Eu twittei que se as pessoas se pegam reclamando da etnia de Mary Jane, elas têm vidas boas demais. (Para aqueles de vocês que pensam que isso significa que estou confirmando que Zendaya ESTÁ interpretando MJ, perceba que embora eu tenha lido o roteiro do Aranha e tenha conhecido a atriz em questão, não tenho ideia de qual é o papel dela. Existe uma boa chance que alguém tenha me explicado o papel, mas, se for o caso, não me lembro. Vou descobrir quando for para a Marvel esta tarde, mas me sinto à vontade para falar até que isso aconteça, porque é sobre o conceito de uma mulher negra interpretando Mary Jane, não a realidade ou hipótese disso.)

Recebi cerca de mil respostas ao meu tweet. A maioria deles foi positiva. Algumas pessoas discordaram – achavam que a personagem deveria se parecer com o que ela se parece nos quadrinhos – mas foram atenciosos. E um punhado era totalmente racista.

Não posso responder aos racistas – nunca vou mudar suas opiniões. Mas para a maioria atenciosa de vocês lá fora:

Para mim, se o atributo principal de um personagem – o que os torna icônicos – é a cor de sua pele, ou a cor de seu cabelo, francamente, esse personagem é superficial e horrível. Para mim, o que faz da MJ a MJ é sua ludicidade feminina alfa, e se a atriz capta isso, então ela vai funcionar no papel. E, para que conste, eu acho que Zendaya até corresponde ao que considero as características físicas primárias de MJ – ela é uma modelo alta e magra – muito mais do que as outras atrizes eram no passado.

Seja qual for o caso, se vamos continuar a fazer filmes baseados em quase todos os heróis brancos e personagens coadjuvantes dos quadrinhos do século passado, teremos que nos acostumar com eles refletindo melhor nosso mundo atual e diverso. Talvez possamos estar abertos à ideia de que, embora alguém possa inicialmente não corresponder à maneira como concebemos pessoalmente um personagem, podemos ser – e muitas vezes somos – alegremente surpreendidos.

Recentemente, surgiram imagens absurdas que alteravam a aparência de Zendaya, intérprete de MJ, para transformá-la em uma garota branca e ruiva. Isso certamente é horrendo, afinal, algumas pessoas estão declaradamente dizendo que preferiam qualquer garota branca no papel, mesmo que essa não seja a Mary Jane dos quadrinhos, a ver uma mulher negra como o par romântico de Peter Parker nos cinemas.

É triste pensar que ainda hoje ainda existam pessoas assim e que esse tipo de comportamento tenha se enraizado na cultura Pop, a mesma cultura que nos apresentou X-Men, Miles Morales, Kamala Khan, Pantera Negra e tantos outros, que hoje em dia, são idolatrados pelas mesmas pessoas que criticam a aparência das personagens negras por não serem fiéis o bastante.

Ela ainda é o par romântico do Aranha, que ajuda a desenvolver e aprofundar o lado humano de Peter Parker.

O problema é realmente fidelidade ou o fato de termos alguém de pele negra?