A Invasão Romancista na Marvel: Boa ou ruim?

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Nos últimos dias, Rainbow Rowell, romancista conhecida por livros adulto-juvenis como Eleanor & Park e Carry On, foi anunciada como a nova escritora de Fugitivos, equipe aclamada da Marvel criada pelo lendário Brian K. Vaughan, que venceu diversos prêmios ao longo dos anos e ganhou uma série de TV para 2018.

Numa primeira análise (especialmente como grande fã de seu trabalho, sobretudo de Eleanor & Park, cuja trama principal esbanja intertextualidade com histórias em quadrinhos) é fácil considerar Rowell como o nome certo para encabeçar os Fugitivos. Ela gosta da equipe original do Vaughan, sabe escrever (muito bem) sobre jovens e os conflitos da juventude e, acima de tudo, ama histórias em quadrinhos. Então, teoricamente, como isso poderia dar errado?

Pode não parecer, mas Rowell é o nome mais recente em uma longa lista de escritores de livros (em sua maioria, romancistas como ela própria) contratados para escrever quadrinhos da Marvel nos últimos dois anos, o que levanta questões: Quão positiva tem sido essa incursão recente de escritores sem muita ou qualquer experiência com quadrinhos na Casa das Ideias?

Fugitivos, por Rainbow Rowell e Kris Anka.

Historicamente, ter escritores transitando entre as duas mídias não é exatamente uma novidade. Nomes como Greg Rucka e Marjorie Liu começaram suas carreiras escrevendo livros antes de dividir sua criatividade com os quadrinhos, enquanto outros como G. Willow Wilson e Alan Moore fizeram o caminho inverso.

Contudo, o momento atual da Marvel se destaca, nesse aspecto, pela quantidade e variedade de “autores de migração” (ou seja, os autores que migram de livros para quadrinhos e vice-versa) sendo trazidos pela editora. Enquanto tal iniciativa faz jus literal aos epítetos como “Totalmente Diferente Nova Marvel” e “Nova Marvel” por trazer, de fato, inovação, o quanto isso rendeu?

Existem vários fatores por trás do triunfo ou fracasso de um título conduzido por autores de migração, sendo, talvez, o principal deles, o personagem ou equipe a ser trabalhada pelo mesmo. Vimos em “Afinal, a Marvel vende bem ou não?” que um personagem relativamente desconhecido ou particularmente novo tem dificuldades em se sobressair nas suas solicitações entre os lojistas, podendo ser cancelado antes mesmo de sua primeira edição chegar nas mãos dos leitores.

Ta-Nehisi Coates, por exemplo, não sofreu desse problema com Pantera Negra, mas sim com o seu título derivado: Pantera Negra & A Gangue. O jornalista e escritor vencedor do National Book Awards surfou na aparição cinematográfica do Pantera Negra em Capitão América: Guerra Civil fazendo a primeira edição da sua fase com o Rei de Wakanda vender em torno de 300 mil cópias. Com tamanho sucesso, o título foi capaz de se manter e desenvolver, tornando-se um sucesso de críticas pela abordagem política sóbria e madura de Wakanda.

Pantera Negra & A Gangue, com avaliações de crítica e público muito parecidas, elenco de apoio ainda mais popular (com personagens como Tempestade, Luke Cage e Misty Knight), cenário mais familiar (ambientado nos EUA e não em Wakanda) e proposta igualmente ousada e sóbria, amargou o cancelamento após apenas duas edições lançadas, sendo forçada a encontrar sua conclusão após seis edições, número abaixo do previsto pelo escritor.

Apesar de contarem com o mesmo escritor e avaliações idênticas, as vendas são completamente distintas. (Fonte: ComicBookRoundup)

Conclui-se a partir disso que as vendas não estão diretamente ligadas à qualidade do material em si. Assumir um personagem ou grupo em alta pode ser crucial para que um escritor de migração, a exemplo de Coates, consiga atingir o seu sucesso, mesmo com um título excelentemente escrito. Também há que se pensar sobre a reputação do Coates enquanto correspondente​ nacional do The Atlantic não dizer muito a seu respeito para um fã de quadrinhos, diferente de outros como Jason Aaron e Brian Bendis, cujos nomes são capazes de dar peso e vendagem a um quadrinho.

Outro aspecto que afeta duramente os escritores de migração é o fato de serem, em sua maioria, romancistas. Enquanto Coates utiliza seu lado jornalista para retratar Pantera Negra como se fosse um grande documentário a respeito de Wakanda, gerando a sobriedade citada, os outros autores são mais emocionais e seus debates sociais são mais pessoais do que necessariamente políticos.

Ao serem capazes de criar elos entre os leitores e seus personagens em seus textos, suas carreiras enquanto romancistas recebem potência, mas quadrinhos são claramente diferentes. A ambientação se divide entre a arte e a narrativa, o contexto nasce da história, não do conto enquanto obra individual e tudo é sujeito ao crivo do editor, que precisa manter o status quo de um universo muito maior do que apenas um título.

Margaret Stohl se apaixonou pela Capitã Marvel, mas não conseguiu fazer jus a esse amor em seu título.

É o exemplo de Margaret Stohl, que não consegue emplacar em Capitã Marvel e segue amargando tanto as baixas vendas em edições únicas quanto as avaliações abaixo da média. A autora, que já escreveu dois livros competentes da Viúva Negra para a Marvel, até agora não foi capaz de encontrar um ritmo igualmente adequado nos seus quadrinhos.

A fase, é claro, tem tido sua serventia: explorar o emocional de uma Capitã Marvel devastada com as consequências da Guerra Civil II e pressionada pelo seu novo papel perante a comunidade super-heroica enquanto defensora da Terra. O que claramente funcionaria em um livro. Apesar disso, enquanto quadrinho, não é empolgante e passa longe da qualidade do trabalho de suas antecessoras na personagem.

Chelsea Cain, por outro lado, se adaptou melhor ao ritmo editorial ao escrever seu título, que atualmente concorre ao prêmio Eisner de 2017, Harpia. Infelizmente, a qualidade do título não levantou a baixa popularidade da personagem, levando ao cancelamento da revista (que, logo em seguida, se tornou best-seller da Marvel na Amazon, embora fosse tarde demais).

Harpia também não conseguiu popularidade o bastante para se manter, apesar das boas avaliações que lhe renderam uma indicação ao Eisner. (Fonte: ComicBookRoundup)

Apesar de seu trabalho competente, Cain teve problemas com o constante ataque de “fãs” da Marvel no seu Twitter e decidiu se retirar em definitivo do cenário de quadrinhos, embora sua curta passagem no meio tenha lhe rendido uma indicação ao Eisner 2017, entre os melhores escritores, além da supracitada indicação do seu título como uma das melhores novas séries do ano anterior.

Existe um padrão inegável nos exemplos: Cada um desses autores de migração repete, em seus quadrinhos, os temas que os consagraram. As escolhas não são aleatórias, Coates é especialista em cultura e política, especialmente sobre afro-americanos, e isso se espelha em seus títulos. Harpia de Cain fala muito sobre o feminismo e quebra de estereótipos. Stohl ama sentimentos. Mariko Tamaki, escritora de Hulk, onde Jennifer Walters passa por uma fase descontrolada, tem seu trabalho literário baseado em emoções conflitantes. Gabby Rivera, latina e LGBTQ, escreve America, personagem também latina e LGBTQ.

O perfil de Rowell, como citado acima, também combina com seus Fugitivos. Só isso, como visto, não basta, mas é o sinal de que a “romantização” da Marvel parece caminhar na direção correta, cabendo também ao editorial o trabalho constante de adequação das narrativas ao nível desejado até que esses escritores estejam familiarizados com os devidos estilos dos quadrinhos.

Nem todos os quadrinhos serão sucessos como Pantera Negra e Harpia, o que não faz da iniciativa algo necessariamente ruim. Talvez Margaret Stohl não tenha nascido para escrever quadrinhos ou seu grande sucesso ainda esteja por vir. Mas, para descobrir, é necessário tentar. E, para isso, a Marvel tem aberto cada vez mais espaços.

Se, por um lado, o trabalho desses autores de migração não será tão impactante quanto a Invasão Britânica dos quadrinhos nos anos 80, por outro, Stohl, Coates, Tamaki, Rowell e muitos outros têm potencial para um futuro brilhante nos quadrinhos, seja na Marvel ou em qualquer outra editora de quadrinhos. E, parafraseando o slogan da primeira iniciativa “Nova Marvel”: O futuro começa aqui.