Uma super-heroína transexual? É assim que a Marvel #AvisaQueSãoElas

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Recentemente, a Marvel lançou a edição anual da coletânea Marvel Voices: Pride. Como sempre, a edição promove um conjunto de histórias de personagens LGBTQIA+ da editora. É a nossa chance de ver figuras queridas, como Phyla-Vell, Heather, Noh-Varr, Hércules, Loki, Billy e Teddy

Em outras ocasiões, essa oportunidade de ler as aventuras de tantos personagens incríveis seria mais do que suficiente para chamar a atenção de qualquer marvete que se preze. Contudo, o ponto alto desta edição é a estreia da personagem Shela Sexton, a super-heroína conhecida como Escapade

Escrita por Charlie Jane Anders (uma premiada romancista transexual) e desenhada pela dupla inseparável Ro Stein e Ted Brandt, a personagem debuta de uma maneira que eu só posso resumir como uma das melhores histórias de origem que já li na Marvel — e posso dizer com certa confiança que já li quase todas, até as mais obscuras. 

Shela é uma mulher trans e mutante. E eu sei: muita gente acha que ser mutante já funciona para servir como representação literária de grupos minoritários da vida real. Como se fosse a mesma coisa. 

Mas não é a mesma coisa. Eu adoro como Charlie Jane Anders entende a distinção entre ser mutante (algo que, querendo ou não, é uma minoria fictícia restrita ao Universo Marvel) e ser transexual. Ela até afirmou com todas as letras em entrevista para a Marvel em maio de 2022 que ser mutante não é metáfora para ser trans e vice-versa.  

Por exemplo, no gibi, os pais de Shela não se importam que ela seja mutante. É até legal para eles. Ela tem poderes! Contudo, quando ela revela ser transexual, eles não reagem bem. Dizem que está sofrendo “lavagem cerebral”, que está sendo influenciada pelos outros, que viu muitas postagens “lacradoras” do Cromossomo Nerd, enfim. 

Já Shela nem gosta muito dos mutantes desde que eles fundaram um Estado em Krakoa. Ela não gosta da ideia de que os mutantes ajam como superiores só por terem um poder (e eu concordo com você, Shelinha). Tanto que ela se refere ao seu próprio poder como um acessório, não como uma parte essencial de si ou de sua personalidade. Só um detalhe genético.

Seu poder mutante é trocar de “circunstâncias” (aparentemente, ela escolhe a extensão dessas circunstâncias) com outras pessoas, que estejam dentro de uma distância-alvo, pelo período de uma hora. Como superpoder, é interessante porque permite inúmeras aplicações, mas também tem restrições óbvias. 

Há uma parte muito ilustrativa na qual ela apanha da Racha-Crânio até não conseguir se mexer e troca de condição física com a inimiga, deixando-a sofrer os danos que causou. Graças a isso, Shela consegue escapar viva, mas, assim que a hora limite passa, os machucados retornam para ela. Não é um poder que a deixa invencível, mas abre possibilidades interessantes de escrita (que Charlie Jane Anders parece estar disposta a explorar).

Tanto que ela não confia apenas em seu poder quando está em ação. Ao lado de seu melhor amigo e colega de quarto Morgan Red (que também é trans e mutante), Shela rouba laboratórios, exposições científicas e bancos. Ao longo da edição, vemos Shela usar vários acessórios nas suas operações, como um pó que desativa aparelhos eletrônicos e dados que manipulam a gravidade. 

Pode parecer estranho uma super-heroína que se ocupa de roubar coisas — ou não, uma vez que a Gata Negra e o Gatuno ganharam o status heroico há bastante tempo — mas Shela não se vê exatamente como uma super-heroína. Ela e Morgan se enxergam como super-vilões aventureiros que ajudam pessoas e roubam de pessoas más. Uma espécie de Robin Hood em dupla.

Enfim, a edição explora um pouco das origens da personagem, se movimentando em três períodos diferentes de tempo, sua infância, seu primeiro encontro com Emma Frost e o “presente”, no qual ela acaba decidindo se vai ou não aceitar a ajuda dos X-Men (algo que ela não quer) para aprender a controlar seus poderes. 

Os flashbacks da infância são os mais leves de ler graças à arte estilo Peanuts e em formato de tiras de jornal que eles adotam para essas cenas. A insegurança, a aceitação, o ato de sair do armário para alguém especial; todos esses momentos importantes para pessoas da comunidade LGBTQIA+ brilham de forma tão descontraída quanto é possível.

Já a Shela do presente se mostra uma das personagens mais autênticas que a Marvel criou nas últimas décadas. É como se ela estivesse realmente viva atrás das páginas, uma pessoa real enfrentando dilemas reais. Não precisa soltar frases de efeito a cada página, como se fosse escrita por um bot que reuniu frases aleatórias do Twitter. Seja no visual, nas falas ou na maneira de lidar com situações, ela só é ela mesma. Créditos para o trio criador da personagem, que parece ter doado cada gota de criatividade e empolgação para que isso fosse possível. 

Caso você esteja se preocupando com a continuidade da heroína, a jornada de Escapade prossegue na revista dos Novos Mutantes a partir da edição 31, que deve sair em outubro de 2022 nos Estados Unidos. De qualquer forma, o futuro já está aqui. #AvisaQueSãoElas.

Curiosidades inúteis (?): 

  • Eu adoro que o nome Shela é o pronome feminino em inglês “she” e em português “ela” juntos; 
  • Morgan e Shela têm um pôster do casamento do Estrela Polar (o primeiro casamento gay da Marvel) em casa;
  • Existe um grupo de apoio para super-heróis e super-heroínas trans na Marvel mantido pelo Demolição.