[CRÍTICA] Miss Marvel – 1ª Temporada | Uma série que faz jus à grandeza da personagem

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Quando as pessoas falarem de Ms. Marvel no futuro, vão lembrar de muitas coisas. Tem toda a questão da mudança dos poderes para a série, o fato da primeira temporada ser praticamente um prelúdio para a introdução da personagem no filme The Marvels, tem o incrível fato de ser a primeira aparição live-action da personagem e a primeira série da Marvel a estrelar uma super-heroína muçulmana.

Eu sempre vou fazer questão de lembrar dela como a série mais parecida com histórias em quadrinhos que eu já vi. É uma categoria bem específica (da minha cabeça, ainda por cima), mas eu não lembro de muitas produções que tenham evocado tantos elementos do material-fonte de uma só vez; não vou usar a palavra “fidelidade” para não assustar os puristas, mas…

E nem estou falando do visual, embora a narrativa visual tente emular o estilo dos gibis também. O que me chama a atenção é como um conjunto de situações que acontecem com a personagem nos quadrinhos é continuamente introduzido na série.

Por exemplo, nos quadrinhos, Kamala visitando o Paquistão é uma situação que só acontece lá para o sexto ou sétimo volume e dura apenas uma edição. Na série, esse elemento é introdutório e se torna crucial como ponto de partida da heroína — além disso, é estendido em duração e relevância de uma forma muito criativa.

O fato da série estar disposta a ceder vinte minutos para um flashback da bisavó da Kamala diz muito sobre o comprometimento dos criadores. Não é nem pelo fato de serem os vinte minutos mais bonitos de toda a série, somados a toda a importância histórica que carregam, mas pelo interesse em expandir e contar a história da Kamala Khan para além do óbvio.

A garantia é: se você leu as cerca de oitenta edições que compõem os títulos principais da personagem até agora, você vai identificar esses elementos atuando com muita força na construção da série. Se você não leu, ou se você não sabe nada da personagem, essa é a sua chance de conhecer o que torna Kamala Khan tão especial: a série são seis episódios de pura construção da personagem.

É sua clássica origem de super-herói. Só precisa assistir e se deixar levar, sem preocupações.

Ajuda o fato da atriz estreante Iman Vellani interpretar tão bem (e de um jeito tão empolgado!) a personagem-título. Ajuda que o elenco de apoio, com os clássicos amigos de Kamala, tenha recebido tanto amor. Um destaque é a melhor amiga Nakia, que ganha seu próprio arco dentro da série.

Eu não me lembro de tantos momentos icônicos protagonizados pela Nakia dos quadrinhos, então, ver a Nakia brilhar na série foi refrescante. Na verdade, toda a cultura muçulmana ganha muito mais destaque do que normalmente veríamos em produções norte-americanas. É sempre bom ver essa religião sendo representada por seus pontos positivos, em vez da tradicional visão preconceituosa e estereotipada.

De fato, eu cheguei a ver algumas pessoas afirmando que é contraditório Kamala ser muçulmana e feminista. Embora esse seja um jeito muito criativo de revelar que você não sabe nada sobre o Islã, é mais fácil assistir à série e, pouco a pouco, se livrar desses preconceitos sem fundamento.

Ajuda também que o núcleo familiar da Kamala seja não só realista, mas estranhamente acolhedor. A casa deles parece um lar, a família parece uma família. Você tem os momentos ruins, os bons, os festivos, os cotidianos. E ver Kamala em paz, em casa, com os amigos, dá uma felicidade que só.

No sentido de tradição e ancestralidade que a série quer alcançar, é muito interessante ver uma heroína buscando suas raízes dentro da família. Um momento particular que me toca é a avó de Kamala tentando recriar suas lembranças da época da Partição, o que acaba levando Kamala a assumir a responsabilidade pela continuidade dessas memórias coletivas do povo paquistanês.

E é um dos momentos nos quais se poderia dizer “mas isso não existe nos quadrinhos”. Bem, é verdade, isso não existe dessa forma literal nos quadrinhos da Ms. Marvel, mas ancestralidade e genética e tradição e família e espaço-tempo são elementos diretamente conectados com a personagem. São sutis e delicados, mas nem de longe ignoráveis. Então, é ótimo que os criadores tenham tido a sensibilidade de explorar esses temas mais amplamente.

Já a ação não é frequente e não é tão boa, e os vilões têm procedências questionáveis. Sendo sincero, eu sou muito fã de Clã Destino (sim, fãs de Clã Destino existem) porque adoro o Alan Davis e a Marvel UK. Então, não, o jeito superficial como usaram o nome do grupo não me deixa feliz. Dito isso, dizer que a série é ruim por causa disso, ou porque mudaram parcialmente os poderes da heroína, não passa de birra infantil. É algo que eu não vou fazer.

Os vilões não são ruins por se chamarem Clã Destino, Noor ou Jeferson. Eles são ruins porque são patetas desprezíveis, sem nome e, aparentemente, sem capacidades cognitivas. Entre a líder suicida de um culto djinn e a oficial racista e etarista do governo, não posso dizer que os vilões me divertiram minimamente.

Especificamente sobre os poderes, eu entendo a justificativa de torná-los visualmente mais cósmicos (não concordo, mas entendo), mas me desaponta um pouco que isso tenha implicado em mudanças no estilo de combate da personagem.

Na minha opinião, a Kamala seria facilmente uma personagem de Hotline Miami: o estilo dela é fazer um punho gigante, bater rápido e forte, preferencialmente para te deixar tão sequelado que inviabilize um retorno ao mundo do crime. É estranho que tenham mudado isso para o poder de criar coisas brilhantes com tons de roxo. Onde está minha Kamala excessivamente violenta, Marvel? Dito isso, a cena dela criando estrelas é a coisa mais linda do mundo, então…

No geral, a série é um verdadeiro pot-pourri de Ms. Marvel. Uma coleção dos elementos icônicos que construíram uma das personagens de quadrinhos mais bem sucedida do século XXI traduzidos em tela de uma das melhores maneiras possíveis. E que venha The Marvels!