John Constantine destruiu a minha vida

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“Na Praia” é uma história que serve de ponte entre os arcos Newcastle e A Máquina do Medo, em Hellblazer. Funcionando como epílogo de um e prólogo do outro, a edição escrita por Jamie Delano e desenhada por Richard Piers Rayner e Mike Hoffman supostamente adota um ritmo tranquilo, marcado pelas lembranças da infância de Constantine na praia. Supostamente.

A praia está quase vazia — e eu suspeito que é porque ela já dá vários sinais de poluição, mas é só uma suspeita — ocupada apenas por uma mãe e seus filhos e um casal daquele tipo de mané que joga latas de cerveja na areia e coisas do tipo. Constantine mantém distância deles usando o velho truque de se fingir de morto porque ele é sociável assim.

A coisa toda fica estranha mesmo quando uma usina nuclear, que ficava próxima da costa, explode, liberando o inverno (e o inferno) nuclear para cima deles. Gaivotas caem do céu, radiação é solta por todos os lados e Tony, o mané, corre para a usina explodida — que é seu local de trabalho — preocupado com as suas botas que estavam lá. Um verdadeiro gênio.

Após algum tempo, a mãe decide que “a sobrevivência depende da evolução das espécies” e que ela vai levar os filhos para o mar para que criem guelras. No painel desenhado por Mike Hoffman as crianças já parecem estar mortas, mas quem sou eu para julgar?

Tirem as suas conclusões.

Enquanto Constantine vai adquirindo uma aparência mais próxima da do Deadpool por causa da radiação, a namorada de Tony vai construindo uma casinha na areia para esperar por ele, pois o amor é lindo.

Decidido a seguir o seu instinto de reprodução, que é mais forte do que o amor, Constantine usa a cantada mais velha do manual e leva um fruto do mar mutante para que eles comam juntos. Nesse ponto, eu ainda consigo me perguntar se o Tony fez um pedido de namoro melhor do que esse, que Deus o tenha.

O tempo passa, e a (agora ex) namorada de Tony está grávida de Constantine, nos dando o direito de testemunhar uma cena extremamente fofa do casal na qual ela fala que “às vezes ele [o bebê] se mexe… e você consegue sentir as cabeças.”

Constantine só consegue pensar (e eu também): “Legal. Por que não? Duas cabeças pensam melhor do que uma.”

Seu filho nasce (enquanto a mãe morre), mas não é apenas um bebê mutante de duas cabeças. É uma foca bebê mutante de duas cabeças. Como diria Constantine, por que não?

O importante é ter saúde.

A foca bebê mutante de duas cabeças foge dos braços de seu pai e tenta alcançar o mar enquanto ele grita palavras de incentivo como se estivesse torcendo para o filho em um jogo de futebol. Só é uma pena que os esqueletos das gaivotas que morreram no começo do inverno nuclear decidem atacar a foca bebê mutante de duas cabeças, bicando-a até a morte.

Como se a coisa toda já não estivesse saudável o suficiente, os pássaros-esqueleto devoram também o próprio Constantine, deixando as ondas do mar levarem o seu esqueleto até ele acordar do pesadelo. A edição termina e a minha vontade é a de pedir um pouco do que o Jamie Delano estava usando quando a escreveu.

Brincadeiras à parte, a história traz o melhor de Jamie Delano, que sempre apresentou em seus trabalhos uma preocupação genuína com o meio ambiente. Claro que tudo é feito de uma maneira tão absurda que você se pergunta o que ele tinha na cabeça — drogas — mas acaba sendo uma das melhores edições do volume 3 de Hellblazer Origens, publicado no Brasil pela editora Panini.

Fortemente influenciado pela tragédia de Tchernóbil, Delano usa seu pessimismo característico para dar um recado sobre como estamos condenados se não mudarmos a nossa relação com a natureza. Esse tema, que também está presente na sua fase do Homem-Animal, segue até mais atual do que na época, levando em conta que as alterações drásticas nos ciclos climáticos têm afetado a biodiversidade do planeta.

O próprio Tony chega a reclamar sobre as “medidas de segurança” que as pessoas querem que a usina tome, afirmando que isso vai prejudicar o seu emprego. Ele também diz que esse papo de câncer é besteira, pois ele já se expôs várias vezes a níveis de radiação acima do permitido e nunca aconteceu nada. Tony é o representante do senso comum, como vários do nosso tempo e da própria Tchernóbil, que deve ao seu acidente o descumprimento das “medidas de segurança” em prol da produtividade.

Um pensador.

É curioso notar que, enquanto todo esse debate se aquece (e o planeta também) no mundo real, não existem muitos gibis no mainstream falando sobre questões ambientais, e a morte do selo Vertigo — onde histórias como essa do Constantine ganharam um lar — só fechou mais uma porta para esse tema.

Atualmente, o mais próximo disso é a série do Monstro do Pântano, que critica a exploração predatória dos recursos do pântano (que serve como representante de todo o meio ambiente) ao retratar o contra-ataque da natureza diante da humanidade. A série, é claro, foi cancelada após o primeiro episódio ser exibido.

Mas tudo vai ficar bem. Afinal, teremos filmes sobre o Blade, as Aves de Rapina e vários outros super-heróis irados nos próximos anos. Se sobrevivermos até lá. Eu queria estar mais otimista, mas a verdade é que John Constantine já destruiu a minha vida.